quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Do Oiapoque ao Chuí em 2 quilômetros


As obras para duplicação da Av. Antônio Carlos no Complexo da Lagoinha abriga operários de todo o Brasil e refletem a diversa cultura do país.

Eles estão sempre vestidos com camisas de mangas longas feitas de tecidos grossos. Suas calças compridas e vermelhas são toscas. As botinas de biqueira emborrachada nunca estão limpas assim como os capacetes que já quase fazem parte de seus corpos. Aos olhos dos transeuntes, parecem todos iguais andando de uma ponta a outra com suas ferramentas em mãos, debaixo do sol incessante. Mas em um primeiro contato já se percebe como suas particularidades se afirmam. É o alto astral e a causa em comum que os unem.

Em sua maioria são homens que vêm de longe para contribuir no desenvolvimento de uma cidade pela qual não possuem nenhuma intimidade. Eles têm vários nomes: servidores, colaboradores, trabalhadores braçais, operários; na realidade, são mais bem definidos como peões. Eles formam um batalhão de quase 4 mil empregados empenhados na duplicação da grande Avenida Antônio Carlos.

Crédito: Davi Rocha.

Horário de almoço: uma das poucas brechas para

descanso na jornada de oito horas de trabalho.

Andando pela caótica obra de chão irregular, entre vigas e torres de concreto que se armam em meio à poeira de terra seca, parece que se volta aos tempos da Torre de Babel; nas conversas que se ouve, o “uai” mineiro se confunde com o “oxente” baiano. Enquanto o carpinteiro sergipano come macaxeira, o feitor carioca come mandioca e o encarregado paraense come aipim. Mas essa Torre de Babel mineirinha não divide seus construtores. Na hora da labuta a linguagem é a mesma. São culturas diferentes que não se excluem e que envolvem a mesma meta.

Diferentemente dos candangos brasilienses, estes homens são itinerantes, pulam de estado em estado onde seus serviços são requisitados. Mas tão logo são concluídas as obras, eles migram mais uma vez, sem sequer usufruírem do que constroem. Ganham pouco por aqui, apesar de Belo Horizonte ter mão de obra escassa. No entanto, o salário ainda é superior ao recebido nos estados de origem. Em sua maioria vem do nordeste mas são muitos também do Rio de Janeiro e de São Paulo .

“Pra ficar bom tem que ter baderna”

São 7 horas da manhã e o carpinteiro Darlan Silva, 41, está reunido com seus colegas para ouvir o DDS, o momento em que o feitor da obra lê a rotina de trabalho para o dia e as regras de segurança. Aproveitando a companhia de sua equipe, Darlan coloca a conversa em dia, pois logo vai para seu posto recluso de trabalho de onde não deve se afastar até 6 horas da noite, horário que deixa o serviço. No seu posto, Darlan não tem mais do que uma serra elétrica circular, pilhas de madeira e uma garrafinha de refresco como companhia.

Pela manhã, as tarefas são mais tranqüilas porque não existe o fator agravante do sol forte e do trânsito intenso do final da tarde. Mas quando se aproxima as 11 da manhã, a combinação de roupas pesadas e sol escaldante se torna quase insuportável. Mas Darlan não reclama porque sabe que poderia ser pior; ele conta com a sombra de sua tenda. Sua maior demanda de trabalho é a construção de painéis que servem de fôrma para o concreto e é nisso que se concentra a maior parte de seu tempo. Sempre que tem uma brecha, o carpinteiro gosta de se descontrair com seu pessoal.

Crédito: Alexandre Ribeiro.

Klédson Oliveira: “Pra ficar bom, tem que ter baderna”

“No começo foi difícil porque o que eu mais gosto no meu trabalho é de entrosar com os colegas, mas como cheguei três meses depois do início das obras peguei tudo no meio do caminho”, explica Darlan. Ele se diverte ainda mais pela composição peculiar do campo de obras. “O meu ajudante é alagoano e meu encarregado é baiano, eu acho que 80% do pessoal aqui não é mineiro, isso é bom porque acabo aprendendo coisa de todo lugar”, conclui.

Aqueles que estão apenas de passagem pela Antônio Carlos tendem a ser imediatistas, considerando apenas o transtorno direto que a obra causa, sem vislumbrar os resultados. E, frequentemente, os operários são os bodes expiatórios nas reclamações. “Geralmente os mais estressados passam aqui xingando, falando o que não devem com a gente, parece que não entendem que estamos fazendo algo pra melhorar a vida deles”, desabafa o vigia da obra da Lagoinha, João Martins Pereira, 35 anos. João nasceu em Padre do Paraíso, no Vale do Jequitinhonha, e veio trabalhar em Belo Horizonte no início das obras. Ele se queixa do salário, que em sua opinião é muito baixo se comparado aos oferecidos em outros estados, como no Rio de Janeiro, aonde também chegou a trabalhar em obras públicas.

Embora os salários sejam inferiores aos que se pagam normalmente no eixo Rio-São Paulo, os orçamentos de obras como as que estão em processo na duplicação da Av. Antônio Carlos geram mais empregos diretos e indiretos. A Câmara Brasileira do Comércio da Construção (CBIC) estima que para cada R$ 1 milhão a mais na demanda final da construção sejam gerados 177 novos postos de trabalho na economia, sendo 34 diretos e 143 indiretos.

Mas não são todos da comunidade no entorno das obras que são intolerantes com os impactos provocados pelo processo de construção. Alguns, como o sorveteiro Klédson Oliveira, 48, entendem que toda construção requer desconstrução, ou nas palavras dele: “Tá ruim agora, mas pra ficar bom tem que ter baderna”, conscientiza.

Além disso, o início das operações no Complexo da Lagoinha teve que contar com aceitação dos moradores, que abdicaram de lares que também eram parte da cultura histórica da cidade. Segundo a Secretaria de Estado dos Transportes e Obras Públicas, para a duplicação da Avenida Antonio Carlos estão sendo desapropriados e indenizados mais de 250 imóveis a um custo de aproximadamente R$ 110 milhões, ao longo dos 2 quilômetros em manutenção.

Embora as desapropriações desconfigurem a imagem de um bairro tão tradicional como o Lagoinha, as previsões para valorização dos imóveis nas adjacências da Antônio Carlos são promissoras. De acordo com a imobiliária Net Imóveis, apartamentos residenciais como os do conjunto IAPI já chegam a quase 100% de valorização após o início das obras.

O que mais parece desestimular os operários que vêm de outras cidades não é nem a truculência de quem não dá o verdadeiro valor a suas atividades nem os salários insuficientes, mas sim a distância das famílias e amigos. “A rotina de trabalho aqui é dura, visito minha família quase que só uma vez por mês e sinto muitas saudades. E olha que eu sou de Minas, tem gente aqui do nordeste que não pode ver a família por mais de seis meses”, lamenta João Martins.

Roubos

Aparentemente uma tarefa sem muitos desafios, ser vigia em um campo de obras pode trazer surpresas não muito agradáveis. É o que conta o ajudante João Martins. “O mais difícil é tomar conta de todas as ferramentas e equipamentos daqui. Já peguei gente tentando roubar peças e partes do maquinário”, disse. Algumas vezes a tentativa de roubo pode até ser negociada. “A maioria dos ladrões são marginais que já ficavam nos arredores do IAPI antes das obras. Quando eles tentam pegar alguma coisa dos canteiros a gente explica que eles estarão nos prejudicando, porque nós não somos os donos”, completa.

De acordo com o sargento Dutra da 21ª Companhia da Polícia Militar, responsável pelo comando da delegacia de polícia do bairro Lagoinha, a criminalidade não aumentou com o início da duplicação, mas se observou novos focos de roubo na região. “Os marginais da região perderam locais de abrigo com o início da duplicação, mas em contrapartida as demolições serviram como novos esconderijos e pontos estratégicos para eles observarem objetos de interesse nos canteiros de obra”, esclareceu o sargento.

A presença constante dos vigias nas obras não consegue intimidar a ação dos meliantes, que quase sempre agem em grupo. “Infelizmente, nem a polícia consegue impor respeito com uma postura ostensiva, quanto mais os vigias, que estão desarmados e não têm muita instrução”, ressalta o sargento Dutra.

Lama

Sempre que chove para. Esta é a realidade da rotina nos canteiros do Complexo da Lagoinha. Com veículos pesados e riscos de desmoronamento, as operações na Antônio Carlos são completamente paralisadas, porque a terra planagem deixa o solo vulnerável. “Neste estágio em que a obra se encontra o solo precisa ser preparado para a pavimentação e a terra planagem é muito necessária. Quando chove isso tudo vira um lamaçal, o que impede a continuidade do trabalho”, explica o carpinteiro Darlan.

É em dias chuvosos que os trabalhadores têm mais tempo de se interagir, pois a única alternativa é esperar pelo final da chuva dentro das cabines de alumínio que abrigam até 600 operários. “Muita gente nem chega a vir bater cartão em dias de chuva, mas os que vêm passam o tempo como podem. Jogamos baralho, contamos casos, ouvimos rádio. É uma boa oportunidade para nos conhecermos melhor e encontrar o pessoal que trabalha em pontos mais distantes”, conta Darlan.

Crédito: Davi Rocha.

Rios de lama: quando chove, as paralisações nas obras

podem se estender por até três dias.

Além dos impactos diretos, a chuva também implica três dias a mais de prejuízo, o tempo necessário para o solo atingir o ponto ideal para manuseio. Mas os piores efeitos das intempéries são sentidos por quem circula na avenida durante as chuvas. As enxurradas levam a terra solta para a boca dos bueiros e os entupimentos geram verdadeiros rios de lama. Em alguns casos, os pedestres chegam a ficar literalmente ilhados e o relevo inclinado da região potencializa as enxurradas.

PANCADÃO

Parou. A inexorável serpente metálica também já não se move. Tudo o que se mexe são pontos alaranjados idênticos. O que se ouve é uma mistura cacofônica de buzinas e gritos dispersos. Anda logo! Vocês tão aqui pra trabalhar ou o quê? O caos. Sinal verde. A víbora de carros se desorienta e não sai do lugar. Gigantes da escavação limitam sua passagem. O caos. A tempestade se enseja e os que sentem o cheiro da poeira grossa no uniforme azul e vermelho já veem seus pés atolados na terra planagem. Pega a britadeira, Waldisney, lá vem descendo água! José vira, vira que vai atolá! Ó paí, ó, o céu tá preto, oxente! Cobre as máquinas, uai! Enxurrada. Desce com furor; lixo, luxo e lama num só fluxo. Tipo assim, minha meia tá um horror! Rômulo, pode fechar a loja que a água só tá subindo, vai alagar. Pancadão. Mercedes e Volks se chocam. A culpa não é minha, você não viu o desvio?! Se não fosse essa obra... O caos. O colosso de aço se torna ainda maior. Vocês são pagos pra ficarem parados aí? Isso aqui fica pronto algum dia? Abrigo. Nas cabines de alumínio, pingos metálicos se intercalam aos gritos de truco. Seis, nove, doze, toma ladrão! Com esse aguaceiro só daqui três dias, Bola! Crepúsculo. Finda a luz, o vigia compartilha sua solidão com o vagar dos carros.

Parou.

Por: Alexandre Ribeiro, David Rocha, Joana Nascimento e José Luiz Campos.

Correção: Fernando Junqueira, Gabriel Ribeiro e Thiago Alves.

Um comentário:

  1. -Usem um Manual para Normatizar o texto;
    -Sugiro que expliquem o significado da sigla DDS;
    -Não se usa mais trema;
    -Concordância: quando se aproximam as 11 (-1).

    Muito boa matéria. O texto final ficou excelente.

    Nota: 25/25.

    ResponderExcluir